A DEVOÇÃO AO SENHOR BOM JESUS MILAGROSO
NOS VAIVÉNS DA EMIGRAÇÃO
O aparecimento da imagem do Senhor Bom Jesus Milagroso, na igreja paroquial de São Mateus do concelho da Madalena, pela década de 60 do século XIX, desencadeou uma invulgar atracção e uma forte piedade que contagiava as almas.
Esse templo converteu-se logo num pólo para onde convergia e donde irradiava uma religiosidade popular sem paralelo não só na ilha como nas circunvizinhanças e que viria a determinar a sua elevação à categoria de Santuário Diocesano.
Diz-se e escreve-se: o Bom Jesus do Pico. Mas há também, a partir daquela manifestação do sobrenatural, um Pico do Bom Jesus. Um Pico novo e diverso para tantos da sua gente e numa linha de valores humanos, cristãos e eclesiais os mais altos. É da história, duma história ainda não conhecida e divulgada o quanto seria para desejar.
Nestas páginas limitar-nos-emos a um ponto de vista deste culto, desta devoção.
Será talvez a devoção que mais andou nos vaivéns da emigração portuguesa.
A imagem do Bom Jesus é a figuração iconográfica do Senhor no quadro da sua Paixão em que foi exposto à população na varanda de Pilatos, pelo próprio procurador romano. Imagem muito frequente no Norte do País. Quando ligada, nalguns lugares, à procissão aí tradicional da noite de Quinta-feira Santa, designa-se pelo Senhor Ecce-Homo. Quando não, pelo Senhor da Cana Verde. Cana que está, como ceptro de achincalhe, numa das suas mãos amarradas; e verde porque quase sempre peça artesanal nessa cor. E nunca se denomina por Bom Jesus, pois esta invocação pelas ditas regiões mantém-se, como regra, vinculada à imagem de Cristo crucificado. A começar pelo Bom Jesus de Braga.
Aquela representação do Cristo doloroso - Senhor Ecce-Homo ou Senhor da Cana Verde - foi levada pêlos nossos emigrantes nortenhos para o Brasil, onde largamente se difundiu e encontrou extraordinária veneração, mas assumindo outro título: o de Senhor Bom Jesus.
Por ela viu-se especialmente tocado, na vila costeira de Iguape, estado de São Paulo, há cerca de 150 anos, um imigrante natural de São Mateus do Pico, Francisco Ferreira Goulart. E tão profundamente tocado que mais tarde, ao regressar, adquiriu e trouxe consigo a maravilhosa escultura do Senhor Bom Jesus para a sua igreja baptismal, a igreja da freguesia onde nascera e se criara.
Devoção esta, a do Senhor Bom Jesus, que seguiu em diáspora colectiva do Norte de Portugal para o Brasil...
Devoção que, posteriormente, viria em retorno individual, do Brasil para uma das ilhas dos Açores...
E devoção que aqui chegou, ao Pico, para se radicar e atingir enorme vigor, mas igualmente para acompanhar outra diáspora que ocorria, de muitos deste povo, agora para os Estados Unidos da América do Norte.
Na primeira igreja que os nossos ergueram no destino, a de S. João Baptista, em New Bedford, logo se entronizou no altar-mor, à direita do orago, uma imagem do Senhor Bom Jesus, como se pode verificar numa fotografia de 1875 aproximadamente. Ainda na Nova Inglaterra, ao Senhor Bom Jesus se dedicou a igreja portuguesa de Newport e um altar na igreja de Nossa Senhora de Lurdes de Taunton.
No lado oposto da grande Nação, na Califórnia, com mais presença de imigrantes açorianos oriundos dos grupos central e ocidental do arquipélago, é maior o número de sítios onde se estabeleceu o culto do Senhor Bom Jesus. Ao menos estes: San Diego (igreja de Santa Inês); Hanford (igreja de Santa Erigida); Riverdale (igreja de Santa Ana); Justine (igreja do Divino Espírito Santo); Turlock (igreja do Sagrado Coração de Jesus); São José (igreja das Cinco Chagas); e Novato (capela do salão da irmandade do Divino Espírito Santo).
No Canadá, na zona de Ontario, existe um centro do culto ao Senhor Bom Jesus: em Oakville (igreja de S. José).
Mas é de referir ainda que este culto, esta devoção ao senhor Bom Jesus, sempre com réplicas da sua imagem, como aliás em todos os casos anteriores, se difundiu por cá mais ao perto para duas paróquias do Pico: Calheta de Nesquim e Criação Velha; duas do Faial: Angústias e Cedros; três de São Jorge: Urzelina, Calheta e Santo Antão; uma da Terceira: São Mateus; e uma de São Miguel: Pedreira do Nordeste.
Abundantes e variadíssimos testemunhos vivos nos vêm dos nossos irmãos imigrantes a traduzir e a documentar o que é para eles o Senhor Bom Jesus. Apenas um se transcreve, do jornalista e escritor João Brum, vulto prestigioso da imprensa luso-americana na Califórnia, que, falando por si, não deixa de interpretar fielmente o que pensa e sente a maioria, embora sem conseguir expressá-lo por palavras tão belas: "Por toda a ilha e ao redor da terra o picoense (ou picaroto) tem o Céu, a religião e a oração sintetizados na imagem, na figura soleníssima, sofredora e máscula do Senhor Bom Jesus do Pico... Todos um dia passaram por São Mateus em caminhada de penitência e de gratidão. O Bom Jesus os levou por terra dentro e pelo mar fora e por sua vez eles O trazem para as terras da emigração e assim a sua imagem reflecte (apenas por coincidência?) a estatura do homem do Pico, da sua verticalidade no gesto e na palavra, no sucesso e na adversidade, na dor, no passo, no acto de viver e na própria morte. O homem do Pico que se preza de o ser onde quer que esteja tem, na súmula de todos estes aspectos, o ar imponente e esbelto que o Rei da sua ilha - o Bom Jesus - apresenta... Assim mesmo: com espinhos e a corda e o ceptro e as vestes do escárnio. Mas de cara alevantada para a terra e para o mar - para a vida.
Há na verdade uma estreita correlação entre romeiro e emigrante: ambos fazem a sua romagem e ambos carregam com seus espinhos. Só que, a meu ver e no meu sentir, também o homem do Pico, renitente e sério, enérgico mas controlado, leva esta carga que a muitos outros esmagaria. É ver o rosto do seu mais estimado patrono, do seu companheiro de andanças pela ilha e pelo mundo, e o corpo todo em jeito de subir e de seguir.
Bom Jesus do Pico, inteiro e pujante, com o peso de tudo mas direito. Deus e Homem, irmão bom de quantos o trouxeram para as Américas...
E que todos me entendam: eu também sou de lá!"
E concluímos com três quadras de um emigrante por muitos anos no Extremo Oriente o poeta de gema Tomás da Rosa, nas suas "Trovas ao Bom Jesus do Pico".
A vossa Imagem dorida
Que nunca em mim se apagou,
No meu leito de criança
Minha mãe ma pendurou.
Mais tarde ao ermo distante
Da minha longa romagem
Uma carta de saudade
Me levou a vossa imagem.
Comigo vos trouxe sempre,
Ó Bom Jesus, desde então,
Já meus avós vos amaram,
Meus filhos vos amarão.
José Carlos
Palestras de Monsenhor Pereira da Silva, na Rádio Clube de Angra, em 1962, aquando o Centenário do Culto ao Senhor Bom Jesus Milagroso em São Mateus do Pico
Acaba de efectuar-se a triunfal visita ao arquipélago dos Açores, do nosso amável e amado Presidente da República, Senhor Almirante Américo Tomás. Sem nunca estar ausente de nós, naquela vigilante função de comando que de nada e de ninguém se esquece, a sua passagem pessoal por esta sua e nossa casa, deu azo a que exteriorizássemos todos, a nossa alegria e a nossa gratidão de sermos portugueses e de o termos por chefe. Foi um alvoroço patriótico este que ainda se não extinguiu de todo. Sentimo-lo presente no perfume espiritual que temos no coração e na réstia de luz que nos ficou nos olhos.
E enquanto vamos regressando lentamente, suavemente, docemente, à normalidade das nossas ocupações, outro caminho de luz paralelo a este, se esboça e cresce diante de nós; mas agora de natureza religiosa: – É a celebração do primeiro centenário do culto ao Senhor Bom Jesus Milagroso, na freguesia de S. Mateus, da Ilha do Pico, – data já assinalada pela presença do próprio Chefe de Estado Português que, de passagem na sua visita aos Açores, ali ajoelhou e rezou.
Com efeito, há um século que o ditoso filho daquela freguesia, Francisco Ferreira Goulart, tendo emigrado para o Brasil, ali foi encontrar alimento para a fé viva que levava no peito, da sua terra natal – a devoção ardente dos brasileiros ao Senhor Bom Jesus Milagroso, concretizada numa linda e sobretudo impressionante imagem, representando Cristo flagelado e coroado de espinhos, com uma cana na mão por ceptro, e por manto real, um farrapo de púrpura, precisamente na posição em que Pilatos o apresentou ao povo para o comover. Se o povo judeu se não sensibilizou, nem com a palavra seca de Pilatos, nem com a expressão banhada de sangue e lágrimas da silenciosa vítima, antes pediu a morte de cruz para o divino flagelado, o nosso feliz conterrâneo, esse sim, comoveu-se e profundamente, à vista da linda imagem em tamanho natural, dos nossos irmãos brasileiros. E pensou menos em enriquecer a sua freguesia natal, com o tão ambicionado ouro do Brasil, do que em dotá-la com uma imagem que daquela fosse cópia fiel, na esperança de que, à volta dela, brotaria uma fonte de maior e mais útil riqueza – um centro irradiante de amor e desagravo ao Senhor Bom Jesus Milagroso e uma nascente de graças e bênçãos. E não se enganou. E se depressa o pensou, mais depressa o fez. Antes mesmo de garantir um elementar pecúlio que lhe tranquilizasse o futuro, mandou executar em primorosa escultura, a fidelíssima cópia da imagem brasileira. E a 6 de Agosto de 1862 era inaugurado solenemente na feliz paróquia de S. Mateus da Ilha do Pico, o culto ao Senhor Bom Jesus Milagroso, representado na impressionantíssima imagem, que há um século vem atraindo àquele já célebre santuário açoriano, uma multidão sempre crescente de incontáveis milhares de fiéis, principalmente do arquipélago e da América; e que ali vêm construindo um monumento imortal de fé sincera e piedade penitente.
Quem estas palavras profere, é testemunha presencial, vai em três quartos de século, dos acontecimentos a que alude e que lhe enchem a já longa existência, até à transbordância. E apraz-me acentuar a característica permanente que assinala esta popular devoção – o espírito de penitência que se revela, não só na penitência-sacramento com que muitos se preparam para as numerosas comunhões daqueles dias, mas ainda e parece que principalmente, ou pelo menos o mais notoriamente, na penitência-sacrifício, na penitência corporal de longas romagens a pé, não raro a pé descalço, em cumprimento de votos, quer em acção de graças, quer em súplica de novos favores. E não se pense que tenha desaparecido esta modalidade de sacrifício, com os modernos e popularmente acessíveis meios de transporte; nada disso. Se o longo trajecto foi facilitado por cómodos veículos terrestres ou marítimos, os romeiros penitentes não se dispensam do seu sacrifício pessoal. É vê-los com uma sinceridade comovedora, desembaraçados de ostentações, ou respeitos humanos, a percorrer de joelhos o adro e a circundar a igreja, ou a acompanhar a longa procissão, descalços. E já os vi de joelhos nus em terra, toda a procissão, deixando sangue no caminho e levando terra na carne viva. Este espectáculo habitual é tão imponente, tão respeitável, tão impressionante, que se não pode ver sem lágrimas nos olhos e sem abalos no coração.
O povo bom prestou sempre homenagem a esta sinceridade. Na memória dos mais velhos está ainda viva a expressão da caridade fraterna em que envolviam os romeiros de longe, postando-se à beira das estradas por onde eles passavam, com aquelas familiares talhas de água e o tradicional púcaro de barro, para dar de beber a quem tem sede – os piedosos, os penitentes, os sequiosos romeiros do Bom Jesus.
Outra característica desta devoção é a constância, que bem mostra o fundamento em que se apoia. Há promessas para a vida inteira, há-as de herança de antepassados, há-as de legados para os vindouros. É uma persistente atitude humana, correspondente a uma contínua acção divina. Com efeito, as graças extraordinárias recebidas ali, ou a distância, (é o mesmo) são a mais concludente prova da constância do amoroso diálogo humano-divino que se vai prolongando de geração em geração, de século em século, como um eco de monte a monte, de serra a serra. E nesta constância há que atender à variedade de vozes. Há lindas narrativas que correm de boca em boca, de proveniência anónima. Fui encontrar documentários concretos escritos em livro próprio e que abrangem testemunhos fidedignos criteriosamente escolhidos, de quase todas as Ilhas dos Açores, da nossa África e da Califórnia. E isto num curto lapso de tempo, apenas desde 1933. Refiro-me ao Livro do Tombo da paróquia de S. Mateus, organizado pela insuspeita autoridade, pela prudente austeridade e delicada consciência do padre Joaquim Vieira da Rosa, respeitável nonagenário que ainda preside aos destinos religiosos daquela paróquia e dirige as festas centenárias. Eu teria grande prazer e os rádio-ouvintes grande edificação, se ainda mais uma vez me fosse dado voltar a este palpitante assunto, não fosse mais que para reproduzir, palavra por palavra, os extraordinários favores, as graças singulares recebidas da infinita misericórdia do Bom Jesus. Como porém a hora vai adiantada, tenho de terminar por hoje e faço-o com três votos: – Bem hajam o reverendo pároco de S. Mateus e o seu ditoso povo, por promoverem a celebração deste primeiro centenário do culto do Senhor Bom Jesus, erguendo assim a primeira pedra para o marco milenário que perpetuará tão querida devoção. – Bem-haja o venerando bispo diocesano, Sr. D. Manuel Afonso de Carvalho que pretende assinalar esta data memorável com um decreto, elevando à categoria de Santuário do Senhor Bom Jesus Milagroso a igreja paroquial do Apóstolo São Mateus. – Bem-haja sobretudo e primeiro que tudo, bem-haja Sua Santidade o Papa João XXÍII, que através da Sagrada Penitenciária Apostólica, quis estar presente neste fausto centenário, com indulgências especiais concedidas aos romeiros do Senhor Bom Jesus.
E por fim, por fim...graças Vos sejam dadas a Vós, ó Bom Jesus, companheiro da minha infância, confidente da minha adolescência, modelo do meu sacerdócio, alvo do meu apostolado e arrimo da minha velhice. Infinitas graças Vos sejam dadas, por terdes permitido que a voz quase apagada deste vosso indigno servo, pudesse ainda ouvir-se como arauto do primeiro centenário da multidão das vossas misericórdias entre nós. Se for esta a minha última palavra neste mundo, fazei com que nunca me cale no outro, para louvar-Vos e agradecer-Vos como mereceis. Há um século que estais connosco Bom Jesus, permiti que convosco estejamos por toda a eternidade, dimensão que só sabemos exprimir por séculos de séculos. Ámen.
II
Há dias ao percorrer saudosamente o caminho de luz aberto entre nós pelo culto ardente que há um século vem sendo tributado ao Senhor Bom Jesus Milagroso, na ditosa freguesia de S. Mateus da Ilha do Pico, afirmei que uma das características, talvez a mais impressionante desta querida devoção, era a constância, a persistência de uma atitude humana que só pode ser explicada pela correspondente continuidade de uma acção divina. Ao assomar de novo aos acolhedores microfones de Rádio Clube de Angra, eu só quereria hoje deixar nos olhos dos amáveis rádio-ouvintes, algumas das gotas de luz mais vivas, que esmaltam a via láctea de tonalidades variadas como os sentimentos que a inspiraram, do amoroso diálogo humano-divino, mantido por aquela constância no decurso deste século. A importância do assunto e a natural ou sobrenatural curiosidade dos meus ouvintes, bem mereciam que em vez de gotas, fosse a minha voz portadora de constelações, tão esmaltada delas é o vasto céu que me foi dado contemplar. Mesmo que só limitássemos o nosso olhar ao âmbito restrito do tempo e espaço abrangido pêlos testemunhos concretos que consultei – refiro-me ao manuscrito a que aludi na palestra anterior – o Livro do Tombo da paróquia de S. Mateus, organizado pelo provado critério do seu actual vigário, o Padre Joaquim Vieira da Rosa – mesmo que só circunscrevêssemos o nosso olhar a esse tempo e a esse espaço, Açores, África Portuguesa, Brasil, Califórnia, nos últimos 30 anos, reconheço que seria radiofonicamente inaceitável aduzir um só testemunho que fosse, de cada localidade, dado que os há em quase todas as ilhas. Em tão pouco tempo e só contando os que foram casualmente registados, dentre as centenas ou milhares que ficaram escondidos no coração dos humildes e anónimos romeiros, contei 38 casos extraordinários e maravilhosos assim distribuídos: no Pico, 18; no Faial, 7; em S. Jorge, 7; na Terceira, 2; na Graciosa, 1; em Angola, 1; no Brasil, l e l da Califórnia. Devo advertir que a palavra milagre que porventura apareça no decurso da narrativa, tem apenas o sentido vulgar que lhe dão a fé e a piedade dos que dele foram objecto ou de que tiveram conhecimento e não pretendo envolver o seu rigoroso conceito teológico que só poderá ser apreciado pela Igreja.
Comecemos pois pêlos Açores e precisamente pelo primeiro facto exposto no citado manuscrito que vem a folhas número 2. Leio: «Em 6 de Agosto de 1934, dia da tradicional festa do Senhor Bom Jesus, visitou esta igreja uma criança do sexo feminino, de nome Maria Amélia Cardoso, natural das Angústias, cidade da Horta, Faial, que em 6 de Agosto de 1930 havia recuperado a vista junto da imagem do Bom Jesus, depois de se lhe aplicar aos olhos a corda pendente das mãos da dita imagem. Tendo então 4 anos, viera dos Estados Unidos da América do Norte, abandonada dos médicos especialistas que a trataram e na Horta também os médicos a declaram incurável. O atestado que aqui reproduzimos assinado pelo reverendo José Garcia de Lemos, só serve para confirmar a verdade deste relato» «José Garcia de Lemos, pároco da igreja paroquial de S. Mateus, da Ilha do Pico, diocese de Angra, certifico que Maria Amélia Cardoso, de 4 anos e meio de idade, filha de Manuel Inácio Cardoso e de Rosa Sousa Xavier, residentes na freguesia das Angústias, cidade da Horta, Ilha do Faial, tinha cegado nos Estados Unidos da América de ambos os olhos e reputada incurável pêlos médicos da América do Norte. Entrando a menina com sua mãe nesta igreja de S. Mateus, no dia 5 do corrente, ao aproximar-se da imagem do Senhor Bom Jesus Milagroso, recuperou repentinamente a vista, ficando vendo perfeitamente todos os objectos, não obstante a claridade do sol ofender-lhe alguma coisa as pupilas. No dia 6, depois da procissão toquei-lhe com a corda do Senhor Bom Jesus nos olhos, desaparecendo também repentinamente esse incómodo. E por ser verdade, passo o presente que assino. S. Mateus, 10 de Agosto de 1930 – O pároco – José Garcia do Lemos». E acrescenta o novo pároco – «Como pároco actual da freguesia, devo acrescentar que em 6 de Agosto de 1934, esta menina veio à sacristia e na presença do reverendo José Garcia de Lemos, da mãe e mais algumas pessoas, mostrou que via perfeitamente, dizendo que o livro que lhe apresentei estava fechado e depois aberto, fazendo-lhe eu estas perguntas para me certificar do estado da sua vista, – assinado Padre Joaquim Vieira da Rosa».
Consolados de contemplar os olhinhos cândidos e agradecidos desta feliz criança, que ao reabri-los os empregou na visão da imagem dulcíssima, passemos agora à nossa província de Angola, à sua capital, Luanda, e vejamos como a presença do Bom Jesus nessa paragem longínqua faz boa companhia e dá protecção aos nossos bravos soldados. Leio o relato a folhas número 45 verso – «No dia 3 de Março veio a esta freguesia a Sra. Hirondina Adelaide Serpa, casada com Manuel António da Silveira, segundo Sub-Chefe da Polícia de Segurança Pública, actualmente em Luanda, Angola, e disse que vinha cumprir uma promessa ao Senhor Bom Jesus, feita pelo seu esposo quando pretendeu entrar para a polícia. Disse mais que em breve viria cumprir outra que ele fez quando tinha 12 anos – (como esta devoção se impregnou no coração das próprias crianças). Continua – Ao ver passar militares pela sua freguesia natal – Prainha do Norte, Pico, prometeu ao Bom Jesus que se um dia fosse tropa, lhe ofereceria o ordenado de um mês por cada posto que subisse. E acrescenta: quando se esboçavam as primeiras desordens em Angola, estando ele em Luanda num café com outros camaradas, elementos terroristas atacaram os presentes que saíram para a rua. Os companheiros ficaram envoltos na refrega e ele como era domingo dirigiu-se à igreja e enquanto assistiu à missa, dois dos seus camaradas foram assassinados pêlos malvados comunistas. Não lhe resta dúvida que o Bom Jesus continua a protegê-lo e por isso cada vez mais agradecida é, por todas as graças que de Suas divinas mãos tem recebido».
Façamos agora a travessia do Atlântico Sul e vamos ali ao Brasil, filho legítimo de Portugal criado à sua imagem e semelhança, e donde veio até estas Ilhas abençoadas um retalho das suas feições expresso na devoção ao Senhor Bom Jesus, ali nascida.
Ouçamos o que vem a folhas 3 verso «Acabo de ter noticia de uma graça deveras extraordinária obtida por um filho da freguesia de São João desta Ilha, que no Rio de Janeiro vendo um seu irmão atacado de febre amarela e enviado para um Necrotério com mais nove, atingidos pelo mesmo mal, quando os médicos declararam que ele não escapava, prometeu vir ao Pico, satisfazer promessas que na sua aflição fez ao Senhor Bom Jesus. Dentro em 5 dias todos os companheiros do seu irmão sucumbiram e este já estava a trabalhar completamente bom. Isto ouvi da boca do miraculado que ora visita seus pais e de quem espero oportunamente obter um relato minucioso da grande graça pela qual se confessa profundamente reconhecido». E acrescenta em nota: – «Falando em 6 de Agosto de 1937 com o irmão e pai do doente, novamente conheci a veracidade do que acima deixo registado. Simas Belém é o sobrenome dos indivíduos a que me refiro».
Por fim rumemos ao Norte, atravessemos essa América Central, onde as gotas de luz são aqui e além substituídas por explosões fétidas do espírito das trevas e paremos na Califórnia trabalhadora e pacífica, abundante e generosa onde os portugueses cantam e rezam. Ouçamos o que vem a folhas 5 verso «Promessa do Bom Jesus feita por um homem dos Cedros, Faial, quando estava na Califórnia. Este homem tinha um prédio de pastagem contíguo ao rio Sacramento, onde criava o seu gado. Uma inundação, proveniente de chuvas torrenciais começou por encharcar e submergir as pastagens daqueles arredores e ameaçava já de perto a sua propriedade. Vendo então perdidas todas as suas economias, pois era a única fortuna que possuía, recorreu ao Senhor Bom Jesus cuja imagem milagrosa era venerada nesta igreja, prometendo que viria depositar aos pés do Bom Jesus uma certa percentagem do valor do seu prédio se este não fosse atingido pelas águas. Caso extraordinário e maravilhoso, as águas correndo em borbotão alto precipitando-se na direcção da sua pastagem, ao chegarem porém a um estreito, que era a divisão entre o vizinho, tomam a direcção do rio e nem uma gota entrou no seu prédio. Perante este sinal visível do bom acolhimento da sua prece ardente, este homem sente-se abalado e profundamente comovido e reconhecido por tão alta munificência do Senhor, resolve sem demora, vir satisfazer o seu compromisso, o que religiosamente cumpriu».
Acabei o último dos quatro episódios destinados para hoje e com ele despeço-me, não sem uma grande mágoa, a de não saber transladar para aqui outro livro sobre que poisaram com devoção e desde menino e moço, os meus olhos absortos. Livro gerado no segredo das almas sinceramente crentes e escrito com as lágrimas ardentemente agradecidas e tecido das páginas palpitantemente vivas de multidões incontáveis que, ano após ano, quase dia após dia, vão desfilando diante da imagem sacrossanta do Bom Jesus Milagroso...
– Senhor Bom Jesus, não olheis para a minha indignidade e faz-me um dos teus romeiros. Mete-me numa página do teu livro e dá-me um lugar no teu céu.